23.12.08

Tsunami

| Chamuscado por Laritz |

Estende uma corda rota sobre duas estacas fincadas na terra vermelha, tatuada de riscos pela ausência de chuvas. Analisa o improvisado varal, ao lado da plantação de vazios, e conclui que suporta o não-peso do que pretende secar. Com pregadores de madeira carcomida e caracóis de arame enferrujado, começa a pendurar o que carrega na pequena caixa. Observa, observa, observa. O mais esfarrapado é o primeiro a ser estendido. Na seqüência, desenrola e alisa sentimento por sentimento, prendendo cada um cuidadosamente. Como não havia mais nada batucando dentro do peito oco, decidiu arrematar um lote de emoções do vendedor ambulante, que liquidava o estoque para fugir da fiscalização. Negócio fechado, apesar da multidão saracoteando ao redor, acomodou tudo numa caixa de papelão estampada com a marca de um sabão em pó barato. Imaginou que seria o produto ideal para remover as nódoas daquelas mercadorias, totalmente empoeiradas pela falta de uso, apenas expostas na barraca do camelô como meias de ratos personagens de desenho animado. No tanque abastecido de lágrimas, banha uma por uma, delicadamente. Deterioradas, requerem cuidados extras, não podem simplesmente centrifugar na máquina de lavar sonhos. Decide secá-las ao sol, para que recuperem a antiga forma, porém nuvens fazem pesada sombra e o vento teima em não soprar um único suspiro. Imagina que três mil tic-tacs de relógio serão necessários até a conclusão da tarefa de dona-de-casa-sem-casa. Serviço feito, acomoda-se sobre um caixote de ripas estreitas e contempla o varal de sentimentos. Gotas salgadas vertem de cada pedaço estendido. Ploc, ploc, ploc, ploc, ploc. Uma, duas, três, quatro, cinco mil. Os pingos desabam vagarosamente no chão, mas não escoam na dureza do solo ressecado. Sem ralo para escapar, fabricam uma poça miúda, pequena, média, grande, que se alarga mais e mais a cada volta preguiçosa do ponteiro. Atinge os pés descalços, esparramados sobre a imensidão vermelha, provocando feridas parecidas com aftas. Permanece imóvel, sentindo a incômoda queimação nas unhas, dedos, vãos, solas, calcanhares, tornozelos. A poça se alastra lenta até ser promovida a lago. Acocorada no falso banquinho, não troca de posição, embora as bolhas alcancem panturrilhas, joelhos e coxas. Quase estátua, movimenta somente os pulmões no vai-e-vem do respirar e o coração no tum-tum-tum-tum do pulsar. Contempla os sentimentos expostos no varal, como uma lagartixa paralisada enquanto prepara o bote para abocanhar uma mosca. Quanto mais líquidos vertem, mais desbotam e encolhem. Conclui que investiu demais em produtos que desaparecem com tão poucos tic-tacs. O lago cresce, se estende em riacho até virilhas e quadris, fincando agulhadas no ciático, o nervo que aborrece em dias frios, não obstante a tarde exale uma quentura de fritar formigas. Com o calor, da água nascem bolotas e o blog-blog da ebulição motiva a fuga de tímidas marolas. As feridas com aparência de baratas param de inflamar quando uma onda escorrega mansamente e atinge umbigo, barriga, peito, braços, cotovelos, ombros, pescoço. Os pingos resvalam no rio e chicoteiam o rosto, impávido, absorto no recheio das duas estacas fincadas na terra. Os músculos não desenham caminhos na face, nem mesmo quando o mar se agita em ressaca, arrotando sereias brancas. Apenas o olhar permanece fixo nos sentimentos pendurados, cada vez mais transparentes e desidratados. Não valem mesmo nada, dinheiro jogado no lixo – reflete, minúsculos tic-tacs antes de submergir na enorme onda salgada que se levanta até quase o céu pintado de roxo, salpicado pelo preto dos urubus em silenciosa orgia. Pelos vãos das grades dos cílios, ainda consegue perceber o varal derrapando na curva do horizonte, mas enxerga apenas os pregadores envelhecidos pelo betume do tempo.

Lara Fidelis

Nota da Autora: Meu conto surrealista Tsunami foi finalista do Mapa Cultural Paulista 2008 e acaba de chegar às livrarias, publicado na coletânea 'O Conto Brasileiro Hoje - Volume IX', RG Editores, São Paulo.

1 comentários:

Unknown disse...

Uma salva de palmas !!!!!

É o que posso dizer, após ler o seu conto, Lara.

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